O servidor que se “recusar a conduzir viaturas e veículos em uso policial sob alegação de falta de licenciamento junto ao órgão de trânsito” estará sujeito à “apuração disciplinar”. A ordem, que atropelou o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), é da Superintendência Regional do Departamento de Polícia Federal em São Paulo (SR/DPF/SP).
Divulgada através de memorando-circular, em 22 de novembro, através da intranet do órgão, a determinação assinada pelo superintendente, Roberto Ciciliati Troncon Filho, foi endereçada a todos os chefes e servidores PF em São Paulo, inclusive das 18 delegacias, instaladas nos aeroportos e no interior do estado.
A “canetada” do chefe da maior superintendência da PF no País foi em resposta à decisão dos policiais federais de não usarem veículos irregulares em missões policiais. A orientação para que seja evitado o uso de viaturas em desacordo com a legislação de trânsito partiu da Fenapef e seus 27 sindicatos. A postura vem sendo adotada gradativamente pelos policiais federais em todo o País.
Em São Paulo, atualmente, dezenas de viaturas oficiais e também veículos apreendidos, usados no trabalho policial com autorização judicial, estão sem licenciamento anual e seguro obrigatório de danos pessoais (DPVAT). Há casos de veículos cujo licenciamento e seguro não é renovados há anos. Várias viaturas também estão com equipamentos irregulares de uso obrigatório, exigidos pelo CTB e resoluções do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), como extintores de incêndio fora da data de validade.
A situação das viaturas policiais irregulares em São Paulo ocorre na maioria das unidades centrais da PF, em Brasília, nas 27 superintendências regionais, 97 delegacias descentralizadas, 15 delegacias de polícia marítima, além de 17 postos temporários e permanentes e dois centros de treinamento.
A decisão do superintendente Roberto Troncon, cuja cópia a Agência Fenapef teve acesso, foi baseada em parecer elaborado pelo delegado Rodrigo Adriane Sandre, seu assessor na Corregedoria Regional. O parecer divergiu do entendimento do Núcleo de Disciplina da própria Corregedoria, que em outro parecer tinha recomendado o óbvio, nos termos da legislação de trânsito: “Veículos oficiais somente podem transitar se estiverem com sua situação documental regulamentar”.
INFRAÇÕES - Para justificar a tentativa de coagir policiais federais a cometer infrações de trânsito, num verdadeiro “malabarismo” de interpretação jurídica, o autor do parecer que embasou a determinação do chefe da PF paulista, concluiu que não compete ao condutor do veículo, “servidor hierarquicamente inferior” ou “comandado” fiscalizar o cumprimento das normas previstas na legislação.
Numa visão militarizada de hierarquia, o parecer aprovado pelo delegado Roberto Troncon sustenta que o servidor “jamais” poderá se recusar ou se eximir de cumprir ordem de condução de viatura, sob a alegação de descumprimento da lei. “Não é de sua alçada a conclusão sobre o tema e ele não poderá ser responsabilizado pelo fato, de forma que não possui interesse legítimo, ou escusa justificável, para a recusa de cumprimento de ordem, absolutamente legal (sic!), de conduzir determinada viatura, ainda que esta não esteja com a documentação em dia (sic!)”, opinou o assessor jurídico do superintendente.
De acordo com a Lei nº 9.503/97, que instituiu o CTB, todo veículo, para transitar na via pública, deverá ser licenciado anualmente pelo órgão executivo de trânsito do Estado, ou do Distrito Federal, onde estiver registrado. A única exceção prevista na lei foi para veículos de “uso bélico”.
O superintendente também ignorou a norma de que cabe ao condutor a responsabilidade pelas infrações decorrentes de atos praticados na direção do veículo. O art. 27 do CTB prevê que antes de colocar o veículo em circulação o condutor deverá verificar a existência e as boas condições de funcionamento dos equipamentos de uso obrigatório. O art. 232 dispõe que a condução de veículo sem os documentos de porte obrigatório, entre os quais o Certificado de Registro e Licenciamento do Veículo (CRVL) é infração sujeita à multa e retenção do veículo, até a apresentação do documento.
De acordo com o documento, muitas vezes, ocorrem situações que geram entraves ao “cumprimento imediato de determinadas prescrições dos normativos de trânsito”, que independem da vontade do administrador. O superintendente teria alegado falta de verba para pagamento do licenciamento e multa dos veículos oficiais.
Os policiais também não poderão se recusar a cumprir ordem de transporte de presos, ainda que a viatura não seja adequada ou não disponha de espaço isolado para acomodar a pessoa detida. Nos termo do parecer, “é de todo recomendável que isso ocorra, mas se diante da situação concreta, específica, isso não for possível, não será isso causa suficiente de impedimento do cumprimento da missão”. As últimas viaturas ostensivas adquiridas pela PF não dispõem de espaços isolados para transporte de presos.
A ordem do chefe da PF em São Paulo baseou-se no pressuposto de que a recusa no cumprimento da ordem “legal ilegal” de dirigir viaturas com documentação irregular poderá configurar transgressões disciplinares tipificadas na Lei 4878/65, que dispõe sobre o regimento jurídico da corporação.
Dentre as supostas transgressões disciplinares, o parecer indicou dois enquadramentos: “negligenciar ou descumprir a execução de qualquer ordem legítima” ou “aconselhar ou concorrer para não ser cumprida qualquer ordem de autoridade competente, ou para que seja retardada a sua execução”. Esta última conduta é considerada falta disciplinar de “natureza grave”, sujeita à penalidade de suspensão de até 90 dias.
O presidente do Sindicato dos Servidores Públicos Civis Federais do Departamento de Polícia Federal no Estado de São Paulo (Sindpolf/SP), Alexandre Santana Sally, informou que o abuso será denunciado ao Ministério Público Federal e ao Ministério Público do Trabalho. Ele informou que a assessoria jurídica do sindicato está analisando as medidas cabíveis a serem tomadas. A diretoria do Sindpolf/SP também vai divulgar uma nota de repúdio.
PAGAMENTOS - O orçamento da PF em São Paulo é o maior de todas as superintendências do órgão. Dados disponíveis no Portal da Transparência revelam que, em junho deste ano, a SR/SP pagou à empresa Seguradora Líder dos Consórcios do Seguro DPVAT S.A., o valor de R$ 55,2 mil, corresponde ao seguro obrigatório de 512 veículos. No portal não consta a informação se todos os pagamentos se referiram ao exercício de 2012, nem discrimina a placa dos veículos a que se referem os pagamentos.
De acordo com tabela divulgada pela Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, as datas para pagamento da taxa de emissão do novo CRLV são definidas de acordo com o final da placa do veículo. Em 2012, a última data de vencimento para veículos e caminhonetes foi 26 de março e a taxa foi de R$ 73,70, por veículo, incluindo o custo para envio pelos Correios. O valor do seguro obrigatório, de R$ 101,16, deve ser recolhido junto com a taxa de licenciamento.
Com a postura de quem está desobrigado a observar a lei, o superintendente da PF em São Paulo faz lembrar Luís XIV, que se achava o dono do mundo e dizia até que o sol nascia só pra ele, o que o tornou conhecido como o “Rei Sol”. O monarca sintetizou suas ideias absolutistas na frase que ficou célebre: "Eu sou a Lei, eu sou o Estado; o Estado sou eu" (“Je souis la Loi, Je souis l`Etat; l`Etat c`est moi”).
Fonte: Agência Fenapef