Está em análise no Congresso Nacional, com previsão de ser votada na Câmara dos Deputados em 26 de junho, a proposta de emenda à Constituição (PEC) 37, de 2011. De autoria do Deputado Federal Lourival Mendes (PT do B/MA), é conhecida como PEC 37. A proposta tem a finalidade de acrescentar um parágrafo 10 ao artigo 144 da Constituição, com a seguinte redação (os erros do texto abaixo são do original da proposta):
§ 10. A apuração das infrações penais de que tratam os §§ 1.º e 4.º deste artigo, incumbem privativamente às polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal, respectivamente.
Em resumo, a PEC 37 deseja atribuir apenas às polícias federal e civis a apuração de todos os crimes praticados no Brasil. Com isso, principalmente o Ministério Público, mas também outros órgãos, como as comissões parlamentares de inquérito (CPIs), o Banco Central, a Receita Federal e as Receitas Estaduais, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e vários outros, poderiam ficar impedidos de investigar fatos que pudessem configurar crime.
A finalidade deste texto não é analisar os aspectos jurídicos da PEC 37. Há muitos estudos detalhados e decisões judiciais sobre a possibilidade de o Ministério Público realizar investigações criminais diretas. No campo científico, um desses estudos é a dissertação de mestrado de Bruno Calabrich, intitulada Investigação criminal pelo Ministério Público: fundamentos e limites constitucionais.
Este texto busca apenas apontar alguns dos equívocos, mentiras e falsidades que têm sido utilizados na defesa da proposta. Nem todos os que apoiam a PEC 37, é claro, agem de má fé. Muitos defensores dela estão sinceramente convencidos de que a proposta é boa. Mas há outros que, de propósito, usam argumentos que sabem ser falsos, e isso não deveria acontecer em uma discussão democrática honesta.
As teses a seguir são algumas das usadas por erro ou má fé na defesa da PEC 37.
O Ministério Público quer enfraquecer a polícia
O Ministério Público não quer nem nunca quis enfraquecer a polícia. Os dois órgãos são parceiros institucionais e devem trabalhar em harmonia. A atividade da polícia é muito importante em qualquer sistema criminal, e ela deve ser prestigiada e fortalecida. Uma polícia respeitosa dos cidadãos e respeitada por eles, capacitada e eficiente é o desejável e contribuiria muito para que o sistema criminal brasileiro fosse mais eficiente e justo. O MP apenas deseja continuar a realizar investigações criminais, em alguns casos, para somar esforços ao trabalho da polícia.
Os membros do Ministério Público querem tomar o lugar dos delegados
Nenhum membro do Ministério Público deseja tomar o lugar dos delegados. A investigação criminal direta é realizada pelo MP há décadas, pelo menos desde o Código de Processo Penal de 1940, sem afetar em nada a atuação nem a situação funcional dos delegados de polícia. Ao contrário, as investigações do MP buscam somar capacidades às da polícia, complementar investigações falhas da polícia ou investigar casos nos quais a polícia simplesmente não quer investigar ou investiga na direção errada.
A polícia apoia a PEC 37
A polícia não é composta apenas de delegados, mas também de agentes, escrivães, peritos, papiloscopistas, investigadores, comissários e diversos outros cargos, conforme as leis de cada Estado. Os apoiadores da PEC 37 são, quase exclusivamente, os delegados de polícia – e, mesmo assim, não todos eles. Muitas outras categorias de policiais são contrárias à PEC, como se pode ver, por exemplo, no site da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef).
A polícia é imparcial
Essa é uma das maiores falácias na defesa da PEC 37. A polícia não é nem pode ser imparcial. A investigação criminal é essencialmente destinada ao Ministério Público, porque assim determina a Constituição, como já afirmou o Supremo Tribunal Federal, e é para o Ministério Público que a polícia investiga crimes (veja-se, por exemplo, o habeas corpus 88.589/GO, do STF).
No processo criminal, o Ministério Público tem a dupla e simultânea missão de acusar, quando houver provas para isso, mas também a de buscar a correta aplicação da lei, inclusive em favor do réu, como frequentemente faz. É o que apontam juristas respeitados, como Hugo Nigro Mazzilli e Cândido Rangel Dinamarco. O Ministério Público não faz parte de nenhum dos poderes nem depende de nenhum deles para exercer sua função. A polícia, ao contrário, é parte do Poder Executivo e está a ele subordinada hierarquicamente, como deve ser (seria inaceitável um órgão armado, como as polícias, sem a direção de autoridades eleitas democraticamente).
Além disso, a investigação policial ocorre antes de existir o processo penal, que só começa quando o juiz recebe a denúncia oferecida pelo Ministério Público. Na fase de investigação, chamada de pré-processual, não cabe falar em “partes” nem em imparcialidade. Esse tema é aprofundado no artigo “A PEC 37 e a polícia imparcial”.
Curiosamente, a polícia defende sua “imparcialidade” afirmando que recebe controle externo do… Ministério Público! A incoerência do argumento é evidente.
A comunidade jurídica apoia a PEC 37
Profunda falsidade. De fato, há algumas entidades, como o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, e juristas como Ives Gandra Martins e José Afonso da Silva, a favor da exclusividade da polícia na investigação criminal.
Apesar desses apoios, há decisões judiciais dos mais importantes tribunais brasileiros a favor do poder investigatório do Ministério Público, como o Supremo Tribunal Federal (por exemplo, no habeas corpus 93.930/RJ e no agravo regimental em agravo de instrumento 856.553/BA, entre outras) e o Superior Tribunal de Justiça (por exemplo, no HC 171.117/PE e no HC 249.731/AP, entre outras). Além disso, numerosos juristas, personalidades e entidades, do Brasil e do exterior, da área jurídica ou não, têm-se manifestado expressamente contra a PEC 37, como os seguintes (em ordem alfabética):
O Ministério Público acusa no processo penal, e quem acusa não deve investigar
A tese de que o Ministério Público não poderia investigar por estar encarregado de exercer a acusação no processo penal é puro mito. Não existe nenhuma norma no Direito brasileiro que estabeleça essa proibição. Na verdade, o normal é que a pessoa ou órgão com legitimidade para ajuizar uma ação tenha a possibilidade jurídica de coletar diretamente as provas necessárias. Os réus nas ações criminais fazem isso, os órgãos públicos em geral, nas ações que promovem, também o fazem.
Qualquer parte, pública ou privada, em qualquer espécie de processo, pode colher diretamente as provas necessárias para ajuizar suas ações. Não há razão para inserir a polícia como intermediário obrigatório no trabalho do Ministério Público. Se prevalecesse a PEC, o Ministério Público seria o único órgão do Brasil proibido de produzir diretamente provas para suas ações.
Essa matéria, por sinal, já foi apreciada pelo Superior Tribunal de Justiça. A súmula 234 do STJ orienta que “a participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia”. Em outras palavras, não há nenhum obstáculo jurídico que impeça o Ministério Público de investigar e usar as provas colhidas na ação penal.
Não se admite é que o juiz realize investigações criminais, pois isso poderia comprometer sua imparcialidade no momento de julgar. Essa proibição decorre do chamado princípio acusatório. Não há o mesmo impedimento, porém, em relação ao Ministério Público, pois ele não é o encarregado de julgar as ações.