As
regiões de fronteira de nosso país encontram-se em absoluto abandono
estatal, situação que deve ser motivo de preocupação social e pauta de
debates em todas as esferas.
Essa
insegurança, produto de políticas públicas equivocadas e baseadas em
premissas erradas, trouxe e traz repercussões negativas de toda sorte,
desde o aumento assustador do tráfico de drogas e de armas de fogo,
passando pela crescente evasão de divisas, pelo contrabando e descaminho
de mercadorias, indo até o tráfico de pessoas e de animais
silvestres.
Na busca
de virar esse jogo, a presidente Dilma Rousseff lançou em 9 de junho de
2011 o chamado Plano Estratégico de Fronteiras (Decreto 7496/2011), um
pacote de medidas que incluía a promessa de dobrar o efetivo policial
nos limites do Brasil com os países vizinhos (Uruguai, Argentina,
Paraguai, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana
Francesa).
A
promessa era a de promover a integração dos ministérios da Justiça, da
Fazenda e da Defesa, com atuações integradas em operações de combate ao
crime organizado nessas regiões. Apesar das promessas políticas e do
compromisso assumido publicamente pelo governo federal, passados quase
cinco anos do lançamento do plano, nada foi feito até a presente data.
O
Tribunal de Contas da União, por meio de Auditoria Operacional
registrada no TC 014.387/2014-0, avaliou a governança das políticas
públicas federais para a faixa de fronteira, oportunidade em que foi
constatada a precariedade das condições das entidades responsáveis pela
fiscalização fronteiriça.
A nossa
faixa de fronteira, que compreende 150 km de largura ao longo de 16.886
km de extensão terrestre, limítrofe com 11 países, passando por 11
estados, onde residem cerca de 10 milhões de habitantes, em 588
municípios, está praticamente abandonada sob o ponto de vista do
controle migratório, da fiscalização aduaneira e, sobretudo, do combate
aos crimes de toda sorte.
Nesse
sentido, o TCU, no item 54 do voto do ministro relator do TC
014.387/2014-0, constatou que há baixa priorização política e
orçamentária para o tema “fronteiras”, registrando inclusive que:
O baixo
grau de investimentos e a carência de recursos humanos e materiais e
financeiros dos órgãos responsáveis pela prevenção, controle,
fiscalização e repressão aos crimes transfronteiriços realçam a
vulnerabilidade daquele espaço territorial e contribuem para agravar sua
condição de ambiente propício aos ilícitos relacionados ao tráfico de
drogas e de armas, entre outros crimes típicos de regiões fronteiriças,
caracterizando verdadeira omissão, parcial ou total, do poder público.
Essa
falta de priorização política para as questões de segurança nas
fronteiras é uma triste realidade em quase todas as instituições. Na
Polícia Federal, todavia, esse desinteresse governamental é ainda mais
assustador. Para operar nos 16.886 km de fronteiras terrestres, o
efetivo policial federal é de aproximadamente mil servidores (incluindo
agentes, escrivães, peritos, delegados e papiloscopistas). Esses números
são absolutamente irrisórios, pois a fiscalização fronteiriça concorre
com todas as demais atribuições das delegacias da PF nessas regiões,
restando, para o controle migratório propriamente dito, míseros 200
homens para monitorar a linha que vai do Chuí (RS) ao Oiapoque (RR). Só
para se ter uma ideia, na fronteira dos Estados Unidos com o México
(principal via clandestina de acesso aos EUA), há um efetivo 20 vezes
maior em operação, para vigiar uma extensão de aproximadamente 3.140 km.
Na nossa
vizinha Argentina, que dispõe de um Produto Interno Bruto (US$ 600
bilhões) quatro vezes menor que o PIB brasileiro (US$ 2,3 trilhões), a
Gendarmeria Nacional (instituição responsável pelo controle das
fronteiras) conta com cerca de 30 mil funcionários para fazer a
segurança de 41 milhões de habitantes (população cinco vezes menor que a
nossa).
Por fazer
fronteira com os três maiores produtores de cocaína do mundo (Colômbia,
Peru e Bolívia), o Brasil, como o país mais próspero economicamente da
região, é o alvo principal de traficantes e comerciantes de drogas, que
chegam às grandes capitais de forma livre e sem qualquer anteparo
estatal.
O mesmo
ocorre com o tráfico de armas de fogo, já que Paraguai e Uruguai são
importantes fornecedores desse tipo de produto para nosso país, servindo
a fronteira entre Brasil e Uruguai (1.069 km) de verdadeiro free shop
para o comércio de um legítimo arsenal de guerra. O tráfico de armas é o
crime mais lucrativo no mundo. No Brasil, calcula-se que para cada arma
apreendida outras 30 entram ilegalmente no país.
Segundo
um relatório elaborado pela Comissão Global da ONU sobre o assunto,
“apesar de os governos, cada vez mais, reconhecerem que estratégias
policiais para o controle das drogas e armas precisam estar integradas
em uma abordagem mais ampla, social e de saúde pública, as estruturas
das políticas públicas, de orçamento e de gastos públicos não se
modernizaram na mesma velocidade”.
Esse
quadro só poderá ser alterado com investimentos em recursos humanos,
tecnológicos e de estrutura. Para se ter uma noção de quão abandonadas
estão as delegacias da PF nas fronteiras, basta verificar o número de
agentes policiais federais com atuação nessas localidades. Enquanto, por
exemplo, a unidade da PF em Uruguaiana (RS) conta com apenas dois
policiais federais por dia, a Gendarmeria Nacional conta com cerca de 20
servidores para fazer a mesma espécie de trabalho, numa mesma área de
ação.
Na
fronteira do Brasil com o Uruguai, em Aceguá (RS), a 60 km de Bagé (RS) e
a 450 km de Porto Alegre, há apenas dois agentes da PF para fiscalizar
cinco rotas (uma BR e quatro rodovias vicinais) de acesso ao interior do
país. Nas cidades gaúchas de Chuí, Santana do Livramento e Jaguarão,
essa realidade não é diferente; apenas dois agentes policiais atuam em
regime de plantão em cada um desses municípios de fronteira.
O
abandono das localidades de fronteira é, sem dúvida, um incentivo para a
já gigantesca evasão de divisas, para o tráfico de armas, para o
tráfico de drogas e para o contrabando de mercadorias, posto que apenas
10% das transações clandestinas são barradas por nossos agentes de
fiscalização.
Todo
mundo sabe, mas não custa lembrar, que não há comércio lícito de armas
pesadas no Brasil (fuzil, metralhadora, bazuca, granada etc.). Diferente
da realidade norte-americana, por exemplo, toda arma pesada apreendida
em território brasileiro é produto de contrabando. Fuzis e metralhadoras
ingressam diariamente, 365 dias por ano, por uma das 20 cidades
fronteiriças.
Notícia
da IstoÉ, veiculada em janeiro de 2016, registrou que há 30 anos os
cariocas convivem com a estratégia de “enxugar gelo”. A polícia desce o
morro com drogas e armas e, no dia seguinte, o arsenal e o estoque de
drogas são rapidamente repostos. Segundo a reportagem, é o tráfico de
drogas que dá lastro financeiro ao crime organizado, mas são os fuzis
que conferem poder aos criminosos.
No estado do Paraná, a situação é ainda
pior, pois a fronteira do Brasil com o Paraguai está dividia pelo rio
Paraná e pelo lago de Itaipu, onde dezenas de portos clandestinos são
usados para o contrabando de drogas, armas e mercadorias diversas, para
um efetivo de apenas seis policiais federais em turnos de 24 horas.
Em Mato
Grosso do Sul, em Ponta Porã e Corumbá, a situação é igual. Tendo como
vizinha a cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero (divisa seca), Ponta
Porã é um dos principais focos de traficância de cocaína, maconha e
crack do Brasil, drogas que têm como destino principal os estados de São
Paulo e Rio de Janeiro. Para guarnecer os cerca de 1.600 km de
fronteira entre Brasil, Paraguai e Bolívia, apenas dois agentes
policiais se revezam em turnos de 24 horas. Cada policial é
(ir)responsável pelo controle de cerca de 800 km.
Em
Corumbá, o posto de controle da Polícia Federal está no chamado Posto
Aduaneiro Esdras, ou apenas Posto Esdras, que é um ponto localizado no
último trecho da rodovia BR-262, a 50 metros da fronteira com a Bolívia e
a cerca de 6,5 km da cidade de Corumbá. O posto pertence ao governo do
Brasil (Receita Federal do Brasil) para cobrança de tributos e
fiscalização em geral, mas a precariedade de capital humano impede
qualquer tipo de ação estatal. Devido à falta de efetivo, durante à
noite não há qualquer fiscalização policial no Posto Esdras.
No estado
de Rondônia, esse quadro não é diferente. A delegacia de Guajará-Mirim,
por exemplo, é responsável pela fiscalização de uma fronteira de mais
de 600 km, onde dois agentes federais têm a quase impossível missão de
controlar o fluxo migratório entre Brasil e Bolívia.
Esse
descaso estatal se repete nas unidades do Acre, Amazonas, Roraima, Pará e
Amapá. De sul a norte (17.000 km), a deficiência da Polícia Federal é
uma regra.
Em entrevista feita com agente policial
federal de um posto de fronteira da Polícia Federal, chama a atenção a
seguinte expressão: “Aqui me sinto um náufrago, e não um agente do
Estado”.
Levando-se em conta o nosso PIB e a extensão de nosso território, pode-se afirmar que somos o país mais desprotegido do mundo.
Assim,
uma estratégia de segurança tem que ser elaborada e posta em prática
imediatamente, já que a falta de controle nas regiões de fronteira é
fator de incentivo à traficância organizada e ao surgimento de novas
organizações criminosas.
Sendo a
atividade da Polícia Federal daquelas em que o seu resultado está
diretamente ligado ao total comprometimento de seus profissionais, as
ações levadas a efeito nas localidades de fronteira, onde as condições
de trabalho, moradia, educação e saúde são extremamente deficitárias ou
inexistentes, devem receber tratamento diferenciado, tal como já ocorre
com servidores das Forças Armadas, por exemplo.
Em
localidades como Tabatinga (AM), Tefé (AM), Bonfim (RR), Chuí (RS),
Oiapoque (AP), Epitaciolândia (AC), Guajará-Mirim (RO), Pacaraima (RR) e
Óbidos (PA), entre outras, essas condições são ainda mais difíceis,
pois, além de enfrentarem a inospitalidade propriamente dita, sofrem com
o alto custo de vida da região e com os elevados gastos com transporte
para saírem de suas sedes.
Diante da
precariedade de condições apresentadas nessas regiões, o grau de
descontentamento dos servidores do Departamento de Polícia Federal é
altíssimo, chegando a mais de 80%, segundo pesquisa feita entre
servidores dessas 27 localidades. O policial federal é designado para
uma dessas regiões sem nenhuma ajuda de custo ou de transporte, sem
qualquer previsão de saída, chegando ao ponto de ter que lá permanecer
por quase dez anos, até que seja contemplado com uma remoção.
Diferentemente
do que ocorre, por exemplo, com os militares brasileiros que, tal como a
PF, fazem missões típicas e exclusivas de Estado junto à fronteira,
sendo lotados nessas regiões por tempo determinado, com apoios
logísticos, de transporte, médico, financeiro (ajuda de custo mesmo para
os recém-formados) e com tempo de serviço acrescido em 1/3 para fins de
aposentadoria, os policiais federais não recebem qualquer incentivo
remuneratório a título de indenização ou de compensação do tempo de sua
estada na localidade especial.
Aprovada e
sancionada há quase três anos, a Lei 12.855/2013, que instituiu a
chamada Indenização de Fronteira para Agentes de Fiscalização da PF,
PRF, RF e Ministério da Agricultura atuantes em regiões de fronteira e
de difícil provimento, ainda não foi regulamentada pelo Poder Executivo,
omissão que contribui fortemente para o agravamento do caos vigorante
nas nossas fronteiras.
De tudo,
fica evidente que o desinteresse do governo federal com a segurança das
fronteiras é fator preponderante para o aumento da traficância de drogas
e de armas de fogo, sobretudo numa época em que o crime organizado se
estrutura transnacionalmente. Não vislumbramos a menor possibilidade de o
Estado retomar o controle das regiões de fronteira, sem um forte e
imediato investimento nas instituições que lá operam, medida que
certamente contribuirá para o restabelecimento da paz social em nosso
país.
Ubiratan Antunes Sanderson é escrivão da
Polícia Federal em Porto Alegre, bacharel em Direito e pós-graduado em
Gestão de Segurança Pública pela Ulbra/RS, além de presidente do
Sindicato dos Policiais Federais do Rio Grande do Sul.